quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Campos de concentração

Campos de concentração

Número de presos dispara no Brasil, provocando caos no sistema. Milhares
ainda não foram sequer julgados e faltam defensores públicos


Em menos de uma década, a proporção de presos em relação à população cresceu 74,4% no Brasil. Se em 2000, para cada 100 mil habitantes havia 141 presos, em 2009 a média saltou para 246. Isso significa que, mesmo com sinais claros da falência do sistema penitenciário, com as denúncias constantes de violações de direitos humanos básicos e dos relatos da falta de controle das autoridades sobre os estabelecimentos, a quantidade de detentos não para de crescer.

A evolução poderia ser apresentada como reflexo do sucesso da polícia e do aumento da eficiência no combate ao crime organizado, mas ao ser analisada em detalhes revela problemas no sistema penal do País. Dos 473.626 presos, 454.168 estão atrás das grades e 19.458 estão em regime aberto. Ao todo, 152.612 são provisórios, ou seja, sequer foram julgados ou ainda podem recorrer das condenações. A demora da Justiça em avaliar tais casos é alarmante considerando que há um déficit de 159.484 vagas.

“Lamentavelmente, a grande maioria dos magistrados quer cumprir apenas as suas obrigações do dia a dia. Estão sempre reclamando da sobrecarga de trabalho, querendo saber se vai ter algum aumento. São poucos os magistrados que efetivamente pensam de uma maneira diferente, que caminham entre as pessoas”, analisa o desembargador Antônio Carlos Malheiros, do Tribunal de Justiça de São Paulo. “O Estado se porta como um mau pai: muitas vezes fica ausente de casa e quando chega, chega apenas para castigar. Se tenho que transformar uma pessoa cujo comportamento já é complicado em uma verdadeira fera a inserindo em um sistema absurdo, que parece às vezes o de um campo de concentração, (é preciso) ter a coragem política de falar ‘não prendo, não vou mandar para a cadeia’. Buscar outras alternativas para que esse homem se recomponha e não mandá-lo para a cadeia. É preciso modificar de forma efetiva o próprio sistema carcerário. Todos nós podemos ser revolucionários se tivermos a vontade, inteligência e coragem políticas”, defende o magistrado, uma exceção entre seus pares.

A indiferença de muitos juízes é agravada pelo fato de, no Brasil, a maioria dos presos não ter condições de contratar advogados e a quantidade de defensores públicos estar muito aquém do necessário para garantir a todos o direito básico de defesa. “Sabemos que pelo menos 90% dos presos são pobres, sem escolaridade e moram em bairros distantes. Isso cria um padrão, uma moldura que acaba virando um estigma”, ressalta Daniela Cembranelli, defensora pública-geral do Estado de São Paulo, destacando o desequilíbrio do sistema em relação a quem tem e quem não tem dinheiro.

Apesar de o número de presos ter aumentado, a sensação de impunidade permanece, fortalecida por sucessivos escândalos de corrupção. Isso só agrava a questão, de acordo com estudos conduzidos pela professora Laura Frade, da Universidade de Brasília, pesquisadora graduada em Direito e Psicologia, com mestrado em Ciência Política e doutorado em Sociologia.

Ela analisou toda a produção legislativa do Congresso Nacional de 2003 até 2007 e descobriu que, de cerca de 600 projetos de lei sobre criminalidade, apenas dois tratavam de combate aos crimes de colarinho branco. “Os outros cuidavam de aumentar a pena, de tornar mais rígido, endurecer, quando o propósito deveria ser a ressocialização”, diz.

Segundo Roberto Bergalli, professor da Universidade de Barcelona, um dos principais especialistas em sistemas penais da Europa, o aumento da proporção de presos por habitantes é um fenômeno global.

“Trata-se de uma estratégia pouco efetiva na tentativa de reduzir índices de criminalidade e violência. Os países que adotam sistemas penais mais rígidos presumem que assim se luta contra a criminalidade, o que não é verdade. A pena passa a ser um instrumento de terror, só que ela é ineficaz neste sentido. A prisão não intimida quem realmente está no caminho de cometer delitos. Pelo contrário, ao manter cárceres bárbaros, perversos, apenas se compromete a estrutura do Estado”, diz.

No Brasil, a situação torna-se ainda mais preocupante tendo em vista a falta de condições para manter tanta gente encarcerada. O déficit de vagas no sistema penitenciário faz com que muitas vezes duas ou mais pessoas tenham que dividir o espaço onde cabe somente uma. Nos locais em que a situação é mais crítica, isso significa que, para poder dormir, os detentos precisam armar redes, se revezar ou até mesmo deitar perto de latrinas sujas.

Em linhas gerais, à imprensa é impedido o acesso a tais masmorras e falta transparência na administração. Em São Paulo, desde 2006 solicitações de visitas da imprensa são constantemente negadas com a justificativa de que o Estado não é capaz de garantir a segurança na área pela qual é responsável. Tal política começou com a passagem do hoje secretário de Segurança Pública Antônio Ferreira Pinto pela secretaria de Administração Penitenciária, e permanece até hoje, com seu sucessor, Lourival Gomes. O acesso a locais como a Penitenciária Feminina da Capital (vizinha do antigo Carandiru), onde 859 mulheres se espremem em um espaço planejado para 251, é vetado, assim como o contato com as presas.

Apesar de, em todo Brasil, a situação ser crítica e ter piorado nos últimos anos, há iniciativas isoladas que podem inspirar mudanças. No Maranhão, o juiz Roberto de Paula tem decretado prisões domiciliares com base na falta de condições nas
carceragens. No Rio Grande do Sul, desembargadores estudam iniciativas semelhantes. Em todo o País, a adoção de penas alternativas tem sido cada vez mais debatida. Além disso, o Conselho Nacional de Justiça tem promovido mutirões, resolvendo em poucos dias pendências que se arrastam desnecessariamente por anos.

Para o professor espanhol Bergalli, é hora de mudanças. “No Brasil há um crescimento social notável, não só pelo País ser emergente, mas também devido às políticas públicas. Deveria haver uma discussão nova sobre a função do castigo penal. É hora de acolher este debate e a mudança de governo que se avizinha pode ser uma oportunidade. Seja qual for o partido (vencedor das eleições)”, sugere o especialista.


Fonte: Folha Universal

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