quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

PGR: violência contra a mulher é crime de ação penal pública incondicionada

Gurgel defendeu que condicionar a ação penal à representação da ofendida atenta contra vários princípios constitucionais
No julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4424), no Supremo Tribunal Federal, nesta quinta-feira, 9 de fevereiro, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, defendeu que a Lei 9.099/95 não deve ser aplicada aos crimes cometidos no âmbito da chamada Lei Maria da Penha e, como consequência lógica, o crime de lesões corporais consideradas leves é de ação pública incondicionada. De acordo com ele, condicionar a ação penal à representação da ofendida atenta contra vários princípios constitucionais.

Roberto Gurgel fez um contexto da época em que foi criada a Lei Maria da Penha. De acordo com ele, até 2006, o Brasil não tinha legislação específica a respeito da violência contra a mulher no ambiente doméstico. Segundo explicou, como as lesões daí resultantes eram consideradas de natureza leve, tais crimes passaram a ser regidos pela Lei nº 9.099/95, que instituíra os juizados especiais criminais para o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo. “A partir de então, também a persecução penal dos crimes de lesões corporais leves passou a depender de representação, por força do art. 88 da referida lei”, disse.

O procurador-geral trouxe o dado de que, após dez anos de aprovação dessa lei, cerca de 70% dos casos que chegavam aos juizados especiais envolvia situações de violência doméstica contra mulheres, e o resultado, na grande maioria, era a conciliação. De acordo com ele, a lei desestimulava a mulher a processar o marido ou companheiro agressor e reforçava a impunidade presente na cultura e na prática patriarcais. “Tudo somado, ficou banal a violência doméstica contra as mulheres”, declarou.

Segundo Gurgel, a interpretação que faz a ação penal depender de representação da vítima importa em violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, aos direitos fundamentais de igualdade e de que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, à proibição de proteção deficiente dos direitos fundamentais, e ao dever do Estado de coibir e prevenir a violência no âmbito das relações familiares.

Quanto à dignidade da pessoa humana, ele afirmou que condicionar a ação penal à representação da ofendida é perpetuar, por ausência de resposta penal adequada, o quadro de violência física contra a mulher, e, com isso, a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. “Há, ainda, nessa interpretação, uma outra vertente de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana: é quando reduz a violência à sua expressão meramente física”, afirmou. Conforme disse, tal interpretação assenta-se num modelo biomédico, e não num modelo social de lesão corporal.

Já sobre a ofensa ao princípio da igualdade, ele assinalou que não se pode afirmar que a interpretação contestada seja em si mesma intencional e diretamente discriminatória em relação à mulher. “Apesar de aparentemente neutra, ela produz, como já visto, impactos nefastos e desproporcionais para as mulheres, sendo, por isso, incompatível com o princípio constitucional da igualdade.” 

De acordo com Gurgel, a interpretação que condiciona à representação o início da ação penal relativa a crime de lesões corporais leves praticado no ambiente doméstico, embora não incida em discriminação direta, acaba por gerar, para as mulheres vítimas desse tipo de violência, efeitos desproporcionalmente nocivos. “É que ela, por razões históricas, acaba dando ensejo a um quadro de impunidade, que, por sua vez, reforça a violência doméstica e a discriminação contra a mulher.”

Quanto à afronta aos arts. 5º, XLI, e 226, parágrafo 8º, da Constituição, segundo destacou, foge a qualquer juízo de razoabilidade admitir que interpretação judicial da lei que veio em cumprimento a mandamento constitucional acabe por violá-lo, e é o que está a acontecer com a interpretação que exige a representação da vítima de violência doméstica para início da ação penal em crimes de lesões corporais tidas por leves. 

Para o procurador-geral, a interpretação que conclui pela necessidade de representação, nessa hipótese, está contra o espírito da Lei Maria da Penha, de por fim à situação de discriminação e violência contra a mulher no ambiente doméstico. Citando Stella Cavalcanti, ele afirmou que a renúncia ao direito de representar redunda em 90% de arquivamento das ações penais. “É fácil imaginar a quanto chega o quantitativo de impunidade se se pensa no número de mulheres que sequer chegam ao ponto de representar.”

Ele disse ainda que, diante do reconhecimento de que o Estado tem o dever de agir na proteção de bens jurídicos de índole constitucional, a doutrina vem assentando que a violação à proporcionalidade não ocorre apenas quando há excesso na ação estatal, mas também quando ela se apresenta manifestamente deficiente. E finalizou afirmando que a ofensa ao princípio da proporcionalidade, sob o prisma da proibição da proteção deficiente, materializa-se, no caso, pelo empecilho à persecução penal nos crimes de lesões corporais leves cometidas no ambiente doméstico.


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